segunda-feira, 3 de agosto de 2009
José Gil sobre “avaliação” (em particular a dos professores)
«Destaquemos três efeitos maiores da avaliação em geral: 1.A captura de forças livres pelo diagrama «avaliação» estabelece hierarquias fixas nas relações de poder. As relações de força funcionam agora como relações de poder; 2. O ser singular do indivíduo é submetido a uma grelha geral em que se comparam, se quantificam e se qualificam competências. A avaliação aplica-se a grupos, populações em que o indivíduo se integra, enquanto «ser avaliado», como uma entidade comparável, homogeneizada por padrões que valem para todos; 3. Estes padrões marcam o grau máximo de poder e de saber. Como tal, induzem no indivíduo a convicção de que está sempre numa situação (a que corresponde um sentimento) de inferioridade e de impoder face ao avaliador e à imagem ideal do avaliado (que vai esforçar-se por a atingir). Neste sentido, a avaliação estabelece graus de exclusão, grupos hierarquizados segundo o valor intrínseco da pessoa ou do grupo avaliado. São exclusões parciais dentro da esfera única da inclusão determinada pela avaliação. Com diz Jacques-Alain Milier em Voulez-vous être évalué?, «a comparação é, com efeito, o núcleo da avaliação». Ou ainda: «A avaliação visa autocondenação pelo sujeito. É a lógica de toda a governação pelo saber.» Traduzindo em termos foucaldianos: a autocondenação do sujeito é uma expressão da mais-valia do poder biopolítico.
Seria necessária uma análise do sistema de avaliação que se quer impor nas escolas portuguesas. Tarefa impossível, pelo estudo minucioso que requer, tanto da natureza das transformações actuais das tecnologias biopolíticas do antigo poder que se manifestava num certo sistema educativo, como do próprio sistema de avaliação, com as particularidades que apresenta. Sumariamente, pode-se dizer o seguinte: a dupla vertente da governação Sócrates que evocámos atrás — por um lado, o centralismo autoritário, regulador, fazendo intervir o Estado nos mais ínfimos mecanismos da vida social; por outro, a vontade de «emagrecer o Estado», de reduzir o seu peso na sociedade civil, «modernizando» o seu funcionamento, leva a que os efeitos das reformas, e em particular a do sistema educativo, possam ser, na substância, puramente superficiais, não produzindo mudanças de fundo, e, na forma, imperativos pesadíssimos, tarefas insuportáveis e inexequíveis. Porquê? Porque — e refiro-me aqui ao Estatuto da Carreira Docente, ao Estatuto do Aluno e à avaliação dos professores — a vertente autoritária e super-reguladora do Estado exerce-se fundamentalmente e quase exclusivamente na forma, na burocracia, nas centenas de documentos, formulários, regulamentações que os professores devem estudar, preencher, horários extraordinários que devem cumprir, etc., sem que os conteúdos do ensino, a substância da relação de aprendizagem professor-aluno seja tratada. Quem examine em pormenor toda esta extraordinária burocracia, que já é pós-kafkiana, a que estão submetidos os professores fica com a ideia de que uma espécie de delírio atravessa quotidianamente os conceptores e decisores do MNE. É verdade que o governo recuou depois das manifestações e greves dos professores. Mas não esqueçamos que toda aquela burocracia que caiu sobre os professores, sufocando-os, impedindo-os de ensinar, foi pensada para ser aplicada — o que revela mesmo um certo delírio na concepção das tecnologias de biopoder. O processo de domesticação dos professores está em curso — e longe de ter terminado. Mas o que se passou chegou para ver que tipo de «modernização» da educação, através da avaliação, está nos espíritos dos governantes mesmo se estes, pela resistência dos professores que contaminou a opinião pública, foram levados a ceder em certos aspectos.
Porquê tudo isto? Porque o interesse do Governo é, antes de mais, cumprir a racionalidade orçamental, levando dezenas de milhares de professores a abandonar a escola. Através, afinal, de um sistema educativo em que avaliar significa desnortear, desanimar, dominar, humilhar, desprezar os professores, os alunos e a educação. É o máximo de mais-valia de biopoder que o Governo quer extrair — com o risco, inevitável, de o sistema se voltar contra si mesmo.[...]
No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz «a desactivação da acção». É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos psicóticos. [...]»
José Gil (2009), Em busca da identidade. O desnorte, Relógio d’Água, Lisboa