segunda-feira, 6 de maio de 2019

Reações ao assassinato de Ferrer y Guardia nos Açores


Reações ao assassinato de Ferrer y Guardia nos Açores

“O verdadeiro educador é aquele que, às vezes até mesmo contra as suas próprias ideias e vontades, apoia a criança e o desenvolvimento de suas energias.” (Ferrer y Guardia)

Em 1909, por ordem do governo espanhol, foi fuzilado em Espanha o pedagogo Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909) fundador da Escola Moderna que funcionou em Barcelona entre 1901 e 1906.

O assassinato de Ferrer y Guardia, foi condenado em todo o mundo não só por quem como ele era anarquista, mas pelas mais diversas pessoas e organizações mais progressistas.

Neste texto, depois de uma breve referência à personalidade e à pedagogia racionalista de Ferrer y Guardia, daremos a conhecer, de forma sucinta, qual foi a reação ao seu fuzilamento por parte de algumas personalidades açorianas e como os jornais dos Açores trataram o assunto.

Ferrer y Guardia e a Pedagogia Racionalista

Francisco Ferrer y Guardia nasceu em Allela, perto de Barcelona a 10 de janeiro de 1859. Em 1886, apoiou um fracassado pronunciamento militar que pretendeu instalar a República, pelo que teve de se exilar em França, onde sobreviveu ensinando espanhol.

Como homem de ação, ao regressar a Espanha, onde a sociedade era dominada pela superstição religiosa e onde a taxa de analfabetismo era superior a 50%, Ferrer fundou, em 1901, a Escola Moderna.

De acordo com Sílvio Gallo, Ferrer acreditava que se aprendia pelo afeto, isto é, embora a aprendizagem fosse “um ato mental, racional, nada se aprende se antes não passar pelo coração, se não mobilizar o desejo”.

Na Escola Moderna, seguia-se a “pedagogia racional” a qual segundo Sílvio Gallo é “um processo educativo que eduque pela razão, para que cada ser humano seja capaz de raciocinar por si mesmo, conhecer o mundo e emitir seus próprios juízos de valor, sem seguir nenhum mestre, nenhum guia”.

Embora não discutindo a utilidade de provas em alguma circunstância, o que é certo é que na Escola Moderna de Ferrer “não havia prémios nem castigos, nem provas em que houvessem alunos ensoberbecidos com nota dez, medianias que se conformassem com a vulgaríssima nota de aprovados nem infelizes que sofressem o opróbrio de se verem depreciados como incapazes”.

Ainda sobre a não existência de provas, Ferrer escreveu o seguinte: “os elementos morais que este ato imoral qualificado de prova inicia na consciência da criança são: a vaidade enlouquecedora dos altamente premiados; a inveja roedora e a humilhação, obstáculo de iniciativas saudáveis, aos que falharam; e em uns e outros, e em todos, os alvores da maioria dos sentimentos que formam os matizes do egoísmo”.

Para além do referido, Ferrer dava importância ao jogo e às brincadeiras não só por serem ações naturais das crianças, mas porque contribuíam para a saúde corporal, para o desenvolvimento físico e pelo contributo que davam para a descoberta de habilidades e predisposições.

No que diz respeito às instalações escolares, Ferrer não aceitava uma escola fechada entre quatro paredes de modo que na sua Escola Moderna a par de salas bem decoradas, havia pátios destinados à realização de atividades ao ar livre. Além disso, toda a atividade escolar era complementada com visitas a fábricas e passeios diversos.

Acusado, injustamente, de ter instigado uma insurreição operária, a Semana Trágica de Barcelona, foi preso, acabando por ser fuzilado em Montjuïc no dia 13 de outubro de 1909.
Como seu desaparecimento físico, o seu pensamento não caiu no esquecimento. Com efeito, as suas ideias, sobretudo após a sua morte, influenciaram a abertura de outras escolas em diversos países, como a Voz do Operário, em Lisboa, e serviram de inspiração a diversos pedagogos, como o brasileiro Paulo Freire.

Reações ao fuzilamento de Ferrer y Guardia nos Açores

O fuzilamento de Ferrer foi muito noticiado nos Açores, nomeadamente na ilha de São Miguel, tendo as posições variado muito. Com efeito, os órgãos de informação mais progressistas, nomeadamente de inspiração anarquista, como o “Vida Nova” ou socialista, como “O Repórter, e republicana condenaram veementemente o assassinato. Houve pelo menos um jornal que tentou manter a neutralidade, o Diário dos Açores, e outros, mais conservadores, como a Liberdade, de Vila Franca do Campo, ou o Correio Michaelense, de Ponta Delgada, pelo contrário apoiaram o governo espanhol e regozijaram-se com o desaparecimento prematuro daquele pedagogo espanhol.
Num texto, não assinado, publicado no Jornal A Folha, no dia 24 de Outubro de 1909, a dada altura o autor ou autora, supomos que a feminista e republicana Alice Moderno condenou o crime, escrevendo o seguinte:
“Ferrer foi um brasseur d’idées, foi um desses indivíduos excecionais que, nesta época de egoísmo, em que se entrechocam os mais sórdidos e desmedidos interesses pessoais, sacrificou toda a sua fortuna particular, toda a segurança individual, toda a sua tranquilidade espiritual, por uma ideia- combatendo por ela até ao ponto de ver correr, pelos furos das balas reais, o seu sangue generoso”.
O jornal “O Repórter”, cujo proprietário e diretor era o socialista Alfredo da Câmara, no dia 24 de Outubro de 1909, também condenou o assassinato de Ferrer nos seguintes termos: “não é impunemente que se mata ou manda matar um Ferrer, entidade de destaque no campo das lutas pelas reivindicações sociais; não é impunemente que se arremessa um cartel de desafio aos explorados, para regalo dos exploradores, aos pobres e aos humildes para tranquilidade dos argentários poderosos…”.
No dia 31 de outubro do mesmo ano, o articulista de “O Repórter” escreveu que “a execução de Ferrer foi um assassínio monstruoso, levado a cabo pelos jesuítas e congreganistas espanhóis de cumplicidade com um governo de camândulas e de punhal”.
A 10 de Novembro de 1909, João Anglin, então jovem estudante anarquista, escreveu no jornal “Vida Nova” o seguinte:
“Não foi em vão que Cristo regou com o seu sangue as urzes do Calvário, porque a sua doutrina sublime, apesar de deturpada e adulterada pelos que se dizem seus ministros, tem atravessado os séculos; não foi debalde que Giordano Bruno, Lourenço de Gusmão, Galileu e tantos outros sofreram horrorosos tormentos, porque a ciência que tanto amavam e por quem deram a vida, tem defendido radiosa Luz entre a espécie humana.
Assim também Francisco Ferrer, a infeliz vítima da malta reacionária, dessa horda de facínoras que para vergonha nossa ainda campeia infrene, acaba de ser cobardemente assassinado em Barcelona. A reação desde há muito tramava contra a existência desse grande vulto, desde há muito tentava perdê-lo. Buscou a ocasião propícia e achou-a.
Estão saciados os ódios, estão satisfeitas as feras!!”

O jornal Diário dos Açores, o de maior circulação nos Açores na época, manteve-se imparcial, tendo no primeiro texto, publicado no dia 26 de outubro de 1909, relatado os últimos momentos de Ferrer e sintetizado o seu pensamento na seguinte frase: “A filosofia de Ferrer era simples: resumia-se no ódio forte e ardente à Igreja: o anticlericalismo era o seu dogma; tinha posto na ciência uma fé absoluta.”

Ao longo de cerca de 20 dias o jornal relatou o julgamento de Ferrer, as reações ao seu fuzilamento em vários países do mundo, com destaque para a transcrição de notícias de vários jornais. Relativamente a Portugal, para além das manifestações de protesto, destacamos um abaixo-assinado a saudar o desempenho do advogado de Ferrer que foi subscrito por várias personalidades, entre as quais o açoriano Manuel de Arriaga.

O Correio Michaelense, diário monárquico, por seu lado, tomou uma posição bem clara de condenação do pensamento de Ferrer, que distorceu em textos publicados durante alguns dias.
No dia 18 de outubro, um colaborador do jornal, em relação à morte de Ferrer escreveu o seguinte: Chamem-me, muito embora, os nomes que quiserem, esses que aí falam do caso com a lágrima velhaca no canto do olho hipócrita. Eu e eles sentimos da mesma forma, isto é, não sentimos cousa alguma pela morte de Ferrer, como não sentimos quando morre qualquer pessoa que não temos o gosto ou desgosto de conhecer”.
A explicação para esta posição deve-se ao facto do articulista considerar Ferrer “um livre pensador, propagandista da livre educação e fundador da Escola Moderna, escola ou grupo de escolas onde se observava o seu método educativo, assente na seguinte base. – Nem deus, nem pátria, nem fé, nem leis”.
O semanário monárquico e católico de Vila Franca do Campo, A Liberdade, dirigido pelo Padre Manuel José Pires seguiu as mesmas pisadas do Correio Micaelense, tendo publicado um texto a deturpar o que pretendia a Escola Moderna.
No dia 16 de outubro de 1909, esquecendo-se da compaixão pregada pelo cristianismo, o jornal aplaudiu a decisão do governo espanhol de mandar assassinar Ferrer nos seguintes ternos:
“Este revolucionário espanhol, e principal instigador das crueldades praticadas em Barcelona foi condenado à morte.
É mais uma vítima do movimento anárquico, que se pretende alastrar por toda a parte, pondo em sobressalto as nações e seus governos.
Se, porém, todos estes tiverem a energia do Governo Espanhol será restabelecida a tranquilidade pública.
É dura a lei da morte, mas em tais casos é a única salvação das nações no descalabro que as ameaça.”
O jornal A Persuasão, dirigido por Francisco Maria Supico, no dia 27 de outubro de 1909, num texto não assinado, intitulado “Guilhotinar, Fusilar” condenou os atos atribuídos a Ferrer, mas manifestou claramente a sua oposição ao seu fuzilamento, como se pode constatar através do seguinte extrato:
“A nosso ver o governo espanhol perdeu na questão Ferrer a melhor das ocasiões de se mostrar generoso e de grandemente se insinuar na simpatia universal, poupando a vida ao criminoso embora o mandasse para um presídio gastar em trabalhos úteis todos os alentos da sua vitalidade.
Pelo modo como procedeu com o revolucionário não acabou as revoluções antes muito contribuiu para aumentá-las; e menos demonstrou que matar é crime pois também matou.
Protestamos com todas as nossas forças contra este selvático modo de exercer justiça social”
Por último, o jornal, a União, de Angra do Heroísmo, dirigido por Manuel Vieira Mendes da Silva, no dia 18 de outubro de 1909, para além de condenar Ferrer, classificando-o como “um agitador raivoso”, apoiou a decisão do governo espanhol de o mandar executar e denunciou os republicanos portugueses por se terem colocado ao lado daquele pedagogo espanhol.
Sobre o assunto podemos ler:
“Um grupo d’homens que aproveita a condenação d’um grande malfeitor para mostrar sentimentos d’humanitarismo e dar provas de solidariedade política não é um partido com aspirações de governo, é quando muito, uma patrulha sem orientação e sem plano definido, disposta a levar ao meio da sociedade a desordem e toda a casta de perturbações.”
Considerações finais
O assassinato de Ferrer, que foi condenado pelas mais diversas entidades mais progressistas em todo o mundo, foi, também, aplaudido pelos sectores mais conservadores da sociedade, onde se incluía a hierarquia da igreja católica.
A condenação de Ferrer não foi o resultado de qualquer crime que tivesse cometido. Pelo contrário, Ferrer foi condenado por defender uma educação emancipadora ou como muito bem escreveu Anatole France, “o seu crime foi ser republicano, socialista, livre-pensador, o seu crime foi ter criado um ensino laico em Barcelona…”
Mais de um século depois da sua morte, importa continuar a estudar e dar a conhecer o pensamento de Ferrer, não só pelo seu valor histórico, mas porque a escola e a sociedade atuais atravessam uma profunda crise e alguns dos princípios da sua Escola Moderna ainda não perderam atualidade.
Principais fontes consultadas
Ferrer y Guardia, F. (2014). A Escola Moderna. São Paulo: Biblioteca Terra Livre
Sánchez, E. (s/d). Francisco Ferrer i Guardia Una educación libre, solidaria, que lucha contra la injusticia. http://educomunicacion.es/figuraspedagogia/0_ferrerguardia.htm

Teófilo Soares de Braga
Janeiro de 2019
(Letra a Letra, nº 8, abril de 2019)